Por: João Everton da Cruz
“Cada povo representa seus heróis
históricos ou lendários de determinada maneira variável segundo os
tempos; essas representações são conceituais. Enfim, cada um de nós tem
determinada noção dos indivíduos com os quais está em contato, do seu
caráter, da sua fisionomia, dos traços distintos do seu temperamento
físico e moral: essas noções são verdadeiros conceitos”.
(Émile Durkheim, As Formas Elementares de Vida Religiosa, 1912, p.511.).
INTRODUÇÃO
Sabemos que o catolicismo popular no Brasil tem suas
raízes mais profundas lá na Idade Média, aqui tendo chegado com os
colonizadores portugueses. O estudo do catolicismo popular vem crescendo
e possibilitando novos caminhos que tornam mais fáceis a compreensão e a
explicação da cultura sertaneja do Nordeste brasileiro. Por outro lado,
os estudos mostram que cerca de 80 % mais ou menos dos católicos da
América do Sul praticam o catolicismo popular. Contudo, há uma
dificuldade em conceituar o catolicismo popular, fixando-lhes os
limites. Brevemente, vejamos, o que diz as Conclusões da Conferência de
Puebla: “Entendemos por religião do povo, religiosidade popular ou
piedade popular, o conjunto de crenças profundas marcadas por Deus, das
atitudes básicas que derivam dessas convicções e as expressões que as
manifestam”.
A origem deste artigo faz ressonância com a vivência
do autor no semi-árido sergipano na década de 80. Sinto-me com dupla
responsabilidade ao tecer esse texto. Primeiro, por ter conhecido,
quando adolescente o Frei Damião de Bozzano (1898-1997). Segundo, porque
estou pesquisando-o no Programa de Pós-graduação em Ciências da
Religião, o referido missionário capuchinho, sob à orientação do
professor Dr. Pedro Assis Ribeiro de Oliveira.
Saltam aos olhos interrogações cada vez mais
eloqüentes a respeito das interpretações do fenômeno religioso em torno
de Frei Damião de Bozzano. O famoso missionário e frade capuchinho foi
uma figura importante e polêmica na história do catolicismo popular
sertanejo do Nordeste brasileiro.
Pio Giannotti era o seu nome de batismo e nasceu no
dia 5 de novembro de 1898 em Bolzano, região do Ádige no norte da
Itália. Logo quando adolescente já tinha aptidão para ingressar nos
estudos religiosos. Foi aos 12 anos de idade que ele ingressou na Escola
Seráfica de Camigliano. Aos 19 anos de idade foi convocado para o
serviço militar, quando estourou a primeira guerra mundial, ficando nas
trincheiras para lutar contra a Iugoslávia.
Terminado a atividade militar, largou a farda e
retornou para o seminário. Nos anos de 1921 a 1925 estudou na
Universidade Gregoriana de Roma. Foi um modesto aluno de Varnach em
Teologia Fundamental. Com Billot estudou Eclesiologia. Com Cappello foi
aluno de Direito e com Degrand em Patrologia. Chegou a diplomar-se em
Filosofia, Direito Canônico e Teologia Dogmática. Ordenou-se Sacerdote
na Igreja de São João de Latrão, chegando ao Brasil em 17 de maio de
1931.
Depois de três meses da sua chegada no Convento da
Penha, em Recife, inicia-se o incansável trabalho missionário. Bom
orador Frei Damião não era. Começa a pregar e a decorar os seus sermões,
porque não dominava a nossa Língua Portuguesa. Os peregrinos ouviam o
Frei não porque compreendiam o que ele falava nos sermões, mas na
esperança dos milagres acontecerem na vida deles, embora que o frade
nunca tenha dito que fizesse milagres, preferindo creditá-los a Deus.
Frei Damião é pela sua biografia e formação um
Sacerdote que “bebeu na fonte” do catolicismo rigoroso quanto à sua
ortodoxia teológica e moral. Foi profundamente marcado pelo clima da
educação religiosa anti-modernista do papa Pio IX (1846-1878)1. A base
ideológica e religiosa do frade está na Doutrina do Concílio de Trento2
(1545-1563), adotada pela Igreja Católica como reação à ameaçadora
Reforma Protestante de Martinho Lutero (1483-1546).
O frade era um missionário obediente aos seus
superiores e um exímio nas suas interpretações, já que para ele não
havia ambigüidade nas cartas do papa. O seu encantamento pessoal vinha
do passado medieval, do catolicismo luso-brasileiro, reforçando as
devoções, o gosto pelas caminhadas – procissões -, o costume das
romarias e a crença nos milagres.
O Frei Damião preenche o substrato religioso da
cultura nordestina, pois depois de três anos da sua chegada ao Brasil,
morre padre Cícero, com 90 anos de idade, e continuou a exercer uma
enorme influência sobre largos setores da população nordestina através
dos seus bons conselhos. O povo tinha padre Cícero como um messias e que
era capaz de obrar milagres para os sertanejos.
O fato é que o missionário Frei Damião é transformado
pela cultura nordestina no sucessor do Pe. Cícero, conhecido pelos
devotos e peregrinos como“Meu Padim Ciço Romão”. Onde quer que ele se
encontrasse, havia um clima de festa e devoção. Quando ele saía em
procissão, a multidão gritava: “Valhei-me, Frei Damião! Valhei-me, meu
Padim Ciço!” Esta manifestação devocional do povo do sertão nordestino
vai cristalizar-se em Frei Damião de Bozzano. O significado da menção ao
Padre Cícero era literal, numa gigantesca concentração popular ocorrida
numa das suas missões em 1975, embora quase todos daquele lugar, como
em todos os Estados do Nordeste, tinham a certeza de estarem diante
próprio santo (Pe. Cícero) que cativou os nordestinos com suas pregações
e seus milagres. Era comum, entre os nordestinos, a declaração de que o
Padre Cícero estava vivo – em certos lugares do Nordeste -, quem
afirmasse o contrário estava arriscando a sua própria vida. Através da
função do conselheiro dentro da cultura do catolicismo popular
nordestino é que podemos analisar o fenômeno religioso em torno de Frei
Damião. O missionário reforçava, sistematicamente, o código moral
sertanejo, tal como fizeram os demais patriarcas, como padre Antônio
Pereira Ibiapina3, o Antônio Vicente Mendes Maciel, conhecido como beato
Antônio Conselheiro4 e o padre Cícero Romão Batista5(1844-1934).
O eminente professor Abdalaziz Moura (1978), inquieto
com os rumos do catolicismo popular, nos fala que muita gente se
pergunta por que Frei Damião conseguiu chegar ao lugar a que chegou, por
que o povo admirava tanto ele, por que as pessoas contam tantos
milagres a seu respeito? A resposta sobre o prestígio de Frei Damião
decorre mais dos seus conselhos do que das pregações que as massas
aplaudem sem entender. Os seus conselhos são fixados na memória dos
devotos.
O historiador Eduardo Hoornaert chegou a declarar que
Frei Damião era um homem inteligente e altamente compreensivo. Por
ocasião da indagação que os seminaristas do ITER fizeram acerca da
Teologia da Libertação, o Frei Damião simplesmente riu e falou: “Vocês
jovens façam a sua teologia da libertação. Deixem-se fazer as minhas
pregações”. Porém, o mais o impressionante mesmo era a sua paciência.
Paciência de um conselheiro que sabe o que faz. Horas e horas, dias e
dias, semanas e semanas seguidas, sempre o mesmo ritmo de confissões sem
fim. As suas intermináveis confissões marcaram a vida do Frei, muito
mais do que as pregações que em grande parte passavam por cima da cabeça
do povo.
A aplicação ao aconselhamento através do
confessionário marcou essa vida e fez do missionário estrangeiro um
conselheiro da cultura sertaneja dos nordestinos. Frei Damião foi
durante mais de meio século o grande conselheiro daquela parte do
Nordeste que si situa no norte do Rio São Francisco; na parte sul sua
influência era bem menor. Era ao “homem santo” do cristianismo
nordestino, na linha do padre Ibiapina, Antônio Conselheiro, padre
Cícero. Alinhado ao modo de trabalhar de seus ilustres predecessores,
por sinal todos grandes educadores do povo abandonado da região.
Vale recordar que somos frutos de uma herança
cultural africana e indígena, daí o nascedouro onde o conselho é
fundamental na vida das pessoas; mesmo com as dependências que ele pode
causar; mesmo assim o conselho é considerado um grande valor para a
vida. Além disso, sabemos que Frei Damião era um homem de grande
generosidade, integridade moral e também o seu verdadeiro espírito de
piedade atraía para ele milhares de devotos, que os acompanhavam para
aconselhar-se espiritualmente.
Viveu, sem dúvida, a simplicidade e a humildade de um
São Francisco de Assis, o pai da sua ordem religiosa. Sempre se manteve
distante das desavenças do mundo, por vezes vítima de políticos
aproveitadores. (Os ruralistas do Nordeste, ex-Presidente da República
Fernando Collor de Mello). Sempre firme nas atividades religiosas e no
zelo pela salvação das almas; parecia alguém imune a qualquer ambiente
pecaminoso. Um mito em vida. Dedicou-se com amou a sua Igreja e ao seu
trabalho missionário junto aos mais empobrecidos, mormente, ao Nordeste.
A reação contra a libertinagem da modernidade
encontrou no missionário um apoio intransigente e corajoso. Em uma época
de fraquezas diante das exigências da vida cristã, essa voz com sotaque
de italiano levanta pelos sertões adentro. Pregava os ensinamentos de
Jesus Cristo e convidava os fiéis para a observância da disciplina
através dos seus sábios e bons conselhos. Vejamos, portanto, alguns dos
seus ensinamentos que foram transmitidos ao povo nordestino. O frade em
sintonia com a tradição popular, aconselhava: “Quem pecou, não peque
mais; quem roubou, não roube mais. As pessoas que furtam vão para as
profundezas do inferno...” “O matrimônio só é quebrado por morte ou do
esposo ou da esposa. Quem deixa o casamento religioso para se casar com
outro no civil está no inferno de cabeça para baixo”. Acreditamos que aí
se deve procurar a raiz do fenômeno de Frei Damião. As pessoas
necessitavam desta orientação sobre as formas do bom comportamento
humano. Por isso a importância do conselheiro na cultura popular
nordestina.
Apresentamos duas e breves entrevistas que fizemos em
meados de julho do ano corrente com duas pessoas. Uma entrevista foi
feita com uma benzedeira e parteira que chegou a confessar e pedir
conselhos ao velho capuchinho. Já a segunda entrevista foi com o Padre
Mário César.
Da entrevista realizada com Dona Josefa Maria da
Silva Santos, 63 anos de idade, conhecida como Josefa da Guia, residente
na cidade de Poço Redondo, Sergipe, Alto Sertão, colhemos as seguintes
palavras.
Fizemos a pergunta:
- “O que a Senhora conhece sobre Frei Damião?”
Ela me respondeu:
- “Frei Damião foi um pastor conselheiro e servo das humanidades. Nós somos uma ovelha e abaixo de Deus é o Frei Damião. Ele era um bom conselheiro. Quando o padre Cícero se mudou daqui para melhor, ficamos sem os seus conselhos. Mas Deus mandou Frei Damião que ficou no lugar do padre Cícero como conselheiro”.
Ela me respondeu:
- “Frei Damião foi um pastor conselheiro e servo das humanidades. Nós somos uma ovelha e abaixo de Deus é o Frei Damião. Ele era um bom conselheiro. Quando o padre Cícero se mudou daqui para melhor, ficamos sem os seus conselhos. Mas Deus mandou Frei Damião que ficou no lugar do padre Cícero como conselheiro”.
Ao entrevistar o Pe. Mário César, Vigário da Paróquia
de Nossa Senhora Conceição em Poço Redondo. Fizemos duas perguntas ao
padre. A primeira indagação foi:
- “O que o Senhor tem a dizer acerca de Frei Damião e padre Cícero?”
O padre me respondeu:
- “Primeiramente Frei Damião é um Santo. Cícero e Damião para o povo sertanejo é uma coisa só. Existe uma espiritualidade que se encontra marcada pelo messianismo herdado pelo Pe. Ibiapina. Portanto, não há uma separação entre espírito e matéria. Há uma presença do trágico na devoção dos romeiros”.
O padre me respondeu:
- “Primeiramente Frei Damião é um Santo. Cícero e Damião para o povo sertanejo é uma coisa só. Existe uma espiritualidade que se encontra marcada pelo messianismo herdado pelo Pe. Ibiapina. Portanto, não há uma separação entre espírito e matéria. Há uma presença do trágico na devoção dos romeiros”.
Fizemos a segunda indagação:
-“Por que o povo gostava de se confessar com o Frei Damião?”
Ele me respondeu:
“Porque ele tinha fama de Santo. A sua fama se
espalhou devido ao seu visual, a sua imagem, o aspecto performático.
Também pela sua austeridade: o jejum, a penitência. O povo dizia que ele
não dormia, não caminhava. As pessoas chegavam a dizer que ele voava
numa nuvenzinha. Naquela época, as pessoas viviam aflitas pelo fim do
mundo. O sucesso de Frei Damião é que ele provocava no povo uma
sublimação, um enlevo coletivo. Não com relação ao que faz o
neo-pentecostalismo hoje. Não era um show como se faz hoje nas Igrejas e
nas praças. O show era a própria imagem do Frei. Como todo carismático
ele foge do controle da Igreja enquanto Instituição”.
A vibração dos devotos era em função da figura santa
de Frei Damião. Leonardo Boff, conhecido como o pai da Teologia da
Libertação no Brasil e teólogo, é enfático em dizer que os pais passaram
aos filhos o que Frei Damião, em suas missões, sempre repetia. Ele
simbolizava a continuidade, o patrimônio cultural do povo sertanejo do
Nordeste brasileiro. Os seus milagres e os seus aconselhamentos
confirmavam a herança recebida. A bem da verdade, o povo queria era
sempre tocá-lo, vê-lo, ficar perto dele, sentir a sua santidade.
A relevância dada ao fenômeno religioso pode ser
estudado pelo substrato religioso presente na cultura nordestina. É
incontestável que exista na cultura popular nordestina sertaneja a
transferência de representação simbólica acumulada ao longo da história.
O sucesso atribuído ao missionário Frei Damião, o tradicional
catolicismo já tinha atribuído ao Pe. Cícero, somente mudou a geografia e
o tempo. Constata-se, nos dias atuais, entre o povo do sertão
nordestino, que ele é o conselheiro continuador do padrinho Cícero do
Juazeiro.
A IDENTIDADE RELIGIOSA SERTANEJA
Para melhor compreendermos a identidade religiosa dos
nordestinos, nada mais adequado do que começar fazendo uma célebre
citação das maiores expressões da literatura brasileira, o escritor
Euclides da Cunha (1866-1909):
“A princípio êste reza, olhos postos
na altura. O seu primeiro amparo é a fé religiosa. Sobraçando os santos
milagreiros, cruzes alçadas, andores erguidos, bandeiras do Divino
ruflando, lá se vão, descampados em fora, famílias inteiras – não já os
fortes e sadios senão os próprios velhos combalidos e enfermos
claudicantes, carregando aos ombros e à cabeça as pedras dos caminhos,
mudando os santos de uns para outros lugares. Ecoam largos dias,
monótonas, pelos ermos, por onde passam as lentas procissões
propiciatórias, as ladainhas tristes. Rebrilham longas noites nas
chapadas, pervagantes, as velas dos penitentes”. (Cunha, 1967, p. 101.).
Estudar o catolicismo popular partindo das pesquisas
já existentes no intuito de desvendar a partir do povo, de suas crenças e
lendas que envolveram o religioso missionário capuchinho Frei Damião de
Bozzano que mais de 60 anos esteve dedicado às santas missões do
Nordeste brasileiro. A pesquisa tem a sua validade no momento em que um
homem de batina surrada percorre povoados, pequenas e médias cidades do
sertão nordestino prometendo o fogo do inferno aos pecadores e o paraíso
aos justos.
Daí que estudar e compreender as raízes do
catolicismo popular sertanejo é um desafio para cientistas sociais e
teólogos. E assim procedendo podemos alcançar como se articula a mística
existente e junto com ela encontrar meios de expressão que possam
reunir com uma cultura autônoma, da solidariedade, da democracia,
cultura que inviabilize a manipulação política e religiosa. O estudo em
questão pode e deve contribuir para o fato de que movimentos desta
natureza dizem respeito à tradição e à cultura popular sertaneja.
Lá, por volta dos anos 50, Frei Damião já é um
conselheiro consagrado pelos sertanejos, consagrado pelo povo porque a
sua atividade pastoral é o de orientar as pessoas em temas caros para
época, como o adultério, o casamento, a fidelidade, o divórcio, o namoro, o demônio, a pílula, o beijo, o inferno, o concubinato,
entre outros conselhos. O fascínio que deriva de sua pessoa faz com que
suas palavras sejam ouvidas e guardadas na memória e no coração dos
devotos para serem seguidas. Quando o Frei Damião chegou ao Nordeste
brasileiro, o catolicismo era tridentino, devocional, apologético. Era,
portanto, uma prática religiosa baseada no forte temor de Deus e das
caminhadas penitenciais. Por outro lado, a maioria dos bispos viviam em
luxuosos palácios, das visitas pastorais marcadas pela santidade e
autoridade episcopal, afastados do cotidiano do povo.
Os seus primeiros ensaios missionários foram
proferidos, com Pe. Cícero Romão Batista vivo, com Lampião vivo,
viajando a cavalo, num sertão nordestino sem estradas, sem energia
elétrica, sem meios de comunicação. O frade começou a proclamar o Reino
de Deus aos sertanejos, usando simbolicamente os ramos verdes, como fez
Cristo em sua entrada triunfal em Jerusalém, fazendo procissões de velas
acesas para clarear os caminhos escuros do semi árido nordestino.
Foram mais de meio século de missões utilizando a
mesma pedagogia missionária. Aconselhando os devotos com os mesmos
apelos. Os anos se passaram, Lampião desapareceu e com ele se foi a
força do movimento do cangaço. Padre Cícero também que falecera. No
decorrer de suas primeiras missões pelo Nordeste, Frei Damião se deparou
com o clima profundamente marcado pela autoridade do Vigário de cada
Paróquia, possuindo o poder de ligar e desligar, fazer e desfazer. Era o
tempo das excomunhões, das indulgências, dos escapulários, das
irmandades, das primeiras sextas-feiras, das devoções, das velas acesas
para as almas nas segundas-feiras, das noites de maio, das Semanas
Santas rigorosas com jejum, abstinência e mortificações.
O exclusivismo católico se fazia presente. O axioma
herdado do passado medieval renasce com força nos seus sermões: “Fora da
Igreja não há salvação”. Contudo, fora da Igreja estavam a Maçonaria e
os protestantes. Era um tempo em que o diabo existia, as tentações
também. A santidade existia, embora, em campos distintos e bem
demarcados. Quando chegava o período de carnaval, a recomendação do
capuchinho era que os fiéis católicos se recolhessem em retiros, fazendo
atos de reparação e desagravo. Foi-se o tempo.
O MISSIONÁRIO FREI DAMIÃO
“Ser missionário é mergulhar na vida do povo”. (Dom Hélder Câmara)
O Frei Damião nunca foi um vigário de paróquia, daí
que sempre esteve isento do peso administrativo de uma Paróquia. Nunca
fez uma pastoral como se faz hoje. Era um frade caminhante, nômade,
andante. O capuchinho tinha um modelo de missão pronta e quando havia
uma mudança no roteiro da missão, ele ficava meio perdido. O seu esquema
de pregação missionária era preparado e, inclusive, ele decorava os
sermões. O missionário deixou sua marca pelo seu contato permanente com o
povo. Desta forma o povo era tocado por uma influência de pregação e
confissão particular. Talvez por isso a cultura nordestina seja marcada
por uma capacidade de ouvir e de absorver os conselhos para a sua
vivência. A experiência missionária de Frei Damião no Nordeste foi
intensa e percorreu as estradas a pé, a cavalo ou mesmo de carro.
As tradicionais missões eram realizadas num período
de oito dias, quinze dias a um mês, embora, havia missões de dois a três
dias, dependendo da necessidade da comunidade local. Era uma pessoa
extremamente carinhosa e fazia parte de uma “dinastia de missionários
capuchinhos” que marcou, intensamente, a região do Nordeste, desde 1612,
com a chegada dos pioneiros, descendentes da França: Frei Claude d'
Abbeville e Frei Ivo d' Evreux. Fica evidenciado na história que os
capuchinhos tiveram grande influência sobre a religiosidade do povo do
Nordeste brasileiro porque foram os grandes arautos de uma forma de
missões ambulantes que teve ressonância desde os séculos XVII, XVIII,
XIX e XX.
De toda missão que Frei Damião participava atraía
muita gente de todos os recantos. A missão tinha um aspecto de festa na
cidade, momento em que se vestia uma roupa nova e se arranjava um amigo
ou mesmo um namorado. O pequeno comércio era revitalizado. Os vendedores
de comida e de relíquias de santos lucravam com as missões. Comumente, o
frade passava o dia todo atendendo confissões. Às vezes eram os homens,
ora eram as mulheres, porém, dando sempre prioridade aos mais velhos e
aos que chegavam primeiro.
Frei Damião como um exímio frade menor da ordem dos
capuchinhos trouxe da Itália para o Brasil, especificamente para a
cultura nordestina, um método de fazer missão, baseado na teologia e na
pastoral do concílio de Trento, que fez um enorme sucesso na cultura
sertaneja, devido ao seu enfoque sobre os pecados da carne.
O ponto alto das missões era a conversão dos fiéis à
vida sacramental: casamentos religiosos, atendimento de confissões e
distribuições de comunhões constituíam a ação pastoral do missionário
nos meios populares. O sucesso das missões se media pelo número de
confissões e comunhões, bem como pelos casamentos regularizados. Havia
conversões ao catolicismo, através das pregações. Os sermões
sensibilizavam o povo. Cabendo, também, uma ênfase apologética, mediante
a condenação das ações dos espíritas e dos protestantes.
As missões populares pregadas pelo Frei Damião eram
consideradas como um dos momentos fortes da ação pastoral. Os objetivos
eram o afervoramento religioso, ocasião de conversão e regularização de
vida, reconciliação de ódios, afastamento dos abusos e superstições e
volta aos Dez Sacramentos. A grande temática das missões era os sermões,
que duravam mais ou menos, quarenta minutos, dependendo da ocasião. O
frade acordava às quatro horas da manhã. Usava uma campainha na mão,
cantava e convidava o povo para a Igreja. O ato inicial das missões era
sempre repetido com as tradicionais procissões da penitência pelas ruas
do lugar.
Certamente que Frei Damião foi um desses gigantes
missionários, capuchinho cuja memória continua presente na cultura
sertaneja do povo nordestino, profundamente marcado pelo sofrimento.
Desde que aportou ao Brasil nos idos de 1931, em Pernambuco, Frei Damião
trabalhou como missionário incansavelmente pela conversão e pela
salvação das pessoas. A ação missionária do frade é marcada, em
especial, pelo dom da escuta e pela dedicação total ao povo, bem como
pelos seus bons conselhos dados aos peregrinos que ouviam, na maioria
das vezes, sem compreender nenhuma palavra dita pelo missionário, talvez
seja por isso que todos os escutavam piedosamente.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
CUNHA, Euclides. Os Sertões. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1967.
MARANGON, Mário. Frei Damião: Diversidade e identidades culturais. Recife, 2006, (Dissertação de Mestrado da Universidade Federal de Pernambuco)
MOURA, Abdalaziz. Frei Damião e os impasses da religião popular. Petrópolis: Vozes, 1978.
OLIVEIRA, Gidson. Frei Damião, O Santo das Missões. São Paulo: FTD, 1997.
OLIVEIRA, Pedro Ribeiro. Religião e dominação de classe: gênese, estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985.
1Papa conhecido por promulgar os dogmas da Imaculada
Conceição de Maria, da infabilidade papal e a centralização do poder
burocrático na Cúria Romana – conhecida como romanização da Igreja.
2O Concílio teve duas partes fundamentais: uma parte foi dogmática e a outra foi a reforma moral.
3O beato Ibiapina era cearense e fazia missões
populares pelo interior do Nordeste, pregando, curando, fundando
confrarias para cuidar de orfanatos e escolas, estimulando o povo a
construir açudes e estradas, enfim, exercendo uma atividade religiosa e
social junto à população do sertão tendo granjeado muita fama. (Cf.:
Pedro Assis Ribeiro de Oliveira. Religião e Dominação de Classe: gênese,
estrutura e função do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis,
Vozes: 1985, p. 242.).
4Dedicou-se a realizar missões pelo sertão
nordestino. Suas pregações eram inspiradas nas “Missões Abreviadas” e
nas “Horas marianas”.
5O movimento religioso que se forma em torno do Pe.
Cícero é marcado pela ambigüidade do papel religioso de sua figura
central. Formado no seminário de Fortaleza segundo o espírito rigorista e
reformador dos Padres Lazaristas e de D. Luiz Antônio dos Santos, o Pe.
Cícero é dado a revelações místicas. Tendo estabelecido em Juazeiro –
na época, um pequeno arraial – Pe. Cícero adota sob vários aspectos e
exemplo do Pe. Ibiapina para seu trabalho pastoral junto aos camponeses.
(Cf.: OLIVEIRA, 1985, p. 248-249.).